Evolução do ato administrativo
A Administração Pública tem ao seu dispor vários instrumentos para cumprir as funções públicas que lhe são indicadas escolhendo-os e combinando-os, a fim de prosseguir da forma mais eficaz e eficiente os objetivos da sua atuação.
De entre eles, destaca-se a figura do ato administrativo, a principal e a mais tradicional forma de atuação da Administração, no qual me irei debruçar de seguida, ficando-me apenas pela análise ao conceito de ato administrativo, tema principal deste trabalho.
A origem deste conceito remonta-nos até aos inícios do séc. XIX. Segundo Massimo S. Giannini, o conceito de ato administrativo terá sido utilizado pela primeira vez em 1810 no Repertoire de jurisdiprudence Guyot por Merlin.
Nesta época, ao conceito de ato administrativo empregava-se o seguinte entendimento: “uma ordem, uma decisão da autoridade administrativa ou ação, um ato da administração no âmbito das suas funções” de direito público. Reduzia-se, assim, a atividade administrativa a uma atividade estritamente executiva.
Com a chegada do séc. XX, o conceito teve de se “estreitar”, muito devido à crescente intervenção da Administração na sociedade e na economia, motivada pelas duas Grandes Guerras Mundiais e pela crise económica de 1929-32.
Nesta altura, a Administração passou também a articular-se com a necessidade de criar garantias que assegurassem a sua conformidade com a ordem jurídica no seu todo (garantias de juridicidade) e que tutelassem a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos. Isto é, à fiscalização da legalidade dos atos praticados pela Administração Pública pelos órgãos do contencioso administrativo.
Contudo, embora existisse a referência à sindicabilidade do ato, a definição de ato administrativo em pouco ou nada se alterou relativamente à anterior. Definia-se como o ato de autoridade praticado para a prossecução de interesses públicos.
Porém, permite desde já distingui-lo de algumas figuras afins, designadamente, dos atos de direito privado, que estão excluídos por força da definição, bem como dos contratos administrativos, pois resultam de um acordo, sendo portanto bilaterais, e dos regulamentos, em face do seu carácter normativo geral e abstrato, em contrapartida ao carácter individual e concreto do ato administrativo.
Por sua vez, em Portugal, por muito curioso que se pareça, o conceito de ato administrativo foi sendo construído, na ausência, até tempos recentes, de qualquer definição normativa, a partir de uma elaboração doutrinal baseada em dados jurisprudenciais.
As divergências
Tal facto fez com que em Portugal correm-se duas conceções, a meu ver complementares, relativas à definição de ato administrativo: uma em sentido amplo e outra em sentido restrito, adotadas separadamente.
Assim, tínhamos por um lado autores que defendiam e recorriam à definição de ato administrativo como “o ato voluntário e unilateral, praticado por um órgão da Administração, no exercício de poderes administrativos, produzindo efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto” – definição em sentido amplo -, e por outro quem considera-se o ato administrativo como “a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que, para a prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto” – conceito em sentido mais restrito.
De acordo com esta doutrina existiam assim duas grandes noções de ato administrativo: a noção ampla ou substantiva, que abrangia atos que, por não serem definitivos e/ou executórios, estavam subtraídos à possibilidade de impugnação contenciosa, e a do ato administrativo definitivo e executório que, ao afetar a esfera jurídica dos cidadãos/administrados, ficava abrangido por essa garantia.
O conceito de ato administrativo no CPA
Só em 1991, com a publicação do CPA é que o nosso ordenamento jurídico dispõe de uma definição legal de ato administrativo, previsto no seu artigo 120.º, atualmente revogado.
Este artigo definia expressamente o ato administrativo como “as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.”
Contudo, esta definição não veio resolver todos os problemas em volta do conceito de ato administrativo, dadas as divergências interpretativas que suscitou, o que levou a uma reformulação do conceito com a reforma em 2015, que irei analisar mais adiante neste trabalho.
Comparando este conceito dado pelo legislador com os conceitos defendidos (em sentido amplo e restrito) verificamos que as diferenças não são muito significativas. De facto, na opinião de Aroso da Silva, o conceito que se encontrava previsto no art. 120.º do CPA de 1991 reunia na mesma categoria de ato administrativo tanto os atos de conteúdo decisório que se projetavam no âmbito da relação administrativa geral ou comum, como aqueles cujos efeitos se esgotavam no âmbito das chamadas relações intra-administrativas ou interorgânicas, que se desenvolvem na esfera interna às entidades públicas, entre os seus órgãos ou entre órgãos e funcionários ou agentes.
É importante fazer-se uma análise a este preceito, para depois ser mais fácil comparar e verificar as alterações introduzidas pela reforma de 2015 no CPA, mais concretamente pelo art. 148.º do referido Código.
Ora, de acordo com o CPA de 1991, e segundo o conceito perfilhado por FREITAS DO AMARAL, que corresponde, no essencial, à noção legal de ato administrativo que constava no art. 120.º do CPA, o ato administrativo é um ato jurídico unilateral, praticado no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração, e que traduz uma decisão de um caso considerado pela AP, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
Neste sentido, o CPA de 1991 qualificava o ato como uma “decisão” – reflexo dos poderes autoritários de que goza a Administração, não se esgotando na emissão de uma declaração de ciência, um juízo de valor ou uma opinião (Aroso de Almeida, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, cit. pág. 121).
De facto, o ato administrativo, não deixa de ser uma decisão unilateral da AP, embora o Código dê grande relevo à participação do administrado nas decisões administrativas.
Em seguida, dizia-nos o art. 120.º do CPA de 1991, que tais decisões eram “dos órgãos da Administração” e apenas a estes, praticadas ao abrigo de normas de direito público, neste caso, normas de direito administrativo.
O CPA também referia o facto de os atos administrativos visarem “produzir efeitos jurídicos”, não se fazendo menção se se tratava de efeitos externos ou também de atos com eficácia meramente interna.
Por último, referia o CPA de 1991 que a produção de efeitos jurídicos se refere a uma “situação individual e concreta”, ou seja, que o ato administrativo é relativo a um caso concreto.
Com a revisão do CPA em 2015, a definição legal de ato administrativo passou a estar prevista no art. 148.º, que corresponde ao art. 120.º do CPA de 1991, com algumas alterações. Contudo, não se trata de um novo conceito, mas antes de um conceito ajustado.
Este novo artigo vem por um lado acrescentar ao conceito o elemento: “eficácia externa”, numa situação individual e concreta, ou seja, os atos administrativos serão aquelas decisões que produzam efeitos jurídicos no âmbito das relações entre a Administração e os administrados.
Conforme refere o Acórdão do TCANorte de 04/05/2006:
I- Atos administrativos são as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de direito púbico visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
II- Os atos de procedimento administrativo, tais como as informações, as respostas a pedidos de informação ou solicitações no âmbito de determinado processo administrativo não se configuram como atos suscetíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos, não sendo, nessa medida, qualificáveis como atos administrativos.
Por outro, elimina do conceito o elemento orgânico da respetiva autoria, dado que a sua prática deixa de se cingir apenas a decisões dos órgãos da Administração, para passar a aplicar a quaisquer entidades que, independentemente da sua natureza, exerçam, sob um prisma funcional, a “atividade administrativa”.
Quer isto dizer, que as decisões qualificadas como atos administrativos deixam de ser apenas emanadas de “órgãos da Administração Pública”, para também passarem a poder ser emanadas por outras entidades e, até particulares, no âmbito do exercício de poderes jurídico-administrativos.